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A FLOR DO DESERTO

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Outro dia estava assistindo na CNN uma reportagem sobre o filme A FLOR DO DESERTO, que conta a história da modelo africana Waris Dirie. O filme é uma denúncia de mutilação vaginal das mulheres somalis. A mutilação serve como rito de passagem. Os clitóris são mutilados com objetos rudimentares como facas, tesouras e até lascas de pedras, sem a mínima higiene.
Na reportagem aparecem imagens de um documentário onde mostrava como era feita a cerimônia. Impressionante ver o rosto da menina logo após ser mutilada, e os rostos das mulheres felizes que esperavam do lado de fora da tenda. Depois mostravam as partes arrancadas da menina juntamente com o sangue em uma espécie de esteira de couro.
A CNN também exibiu - do mesmo documentário – uma entrevista com uma doutora – não me lembro o nome – que defendia a permanência deste tipo de ritual. Dizia ela que ninguém tem o direito de meter o bedelho na cultura de um povo.
O que quero discutir aqui, não é o que é certo ou o que é errado. Não quero fazer nenhum julgamento cultural. O fato é que desde filme Nanook, o Esquimó, de Robert Flaherty, até Xingu - A Terra Mágica, de 1984, do diretor Washington Novaes, os documentaristas vem revelando mundos que nós jamais imaginávamos como era – até mesmo que existiam. Porém, o que acontece é que, quando essa realidade vai de encontro aos nossos valores, nós nos sentimos tão indignados com o que vemos que nos achamos no direito de intervir naquela realidade.
Os antropólogos dizem que – enquanto cientistas – não podem interferir na realidade local de um povo que está sendo pesquisado. Mas será que esta intervenção já não ocorre com a simples presença do cientista no local?
Uma sinopse do filme apresenta a seguinte descrição: (...) A denúncia de mutilação genital das mulheres somalis é o grandioso objetivo da obra Flor do Deserto. Através de sua biografia, a modelo africana Waris Dirie, atravessa as fronteiras da Somália e mostra ao mundo o lado grotesco de sua cultura.
Atente para “o lado grotesco da cultura”.
Herótodo já dizia: “Se oferecêssemos aos homens a escolha de todos os costumes do mundo, aqueles que lhes parecessem melhor, eles examinariam a totalidade e acabariam preferindo os próprios costumes, tão convencidos estão de que estes são melhores do que todos os outros”.
Montaigne afirmava: “(...) na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra”.
Na verdade, presos a uma única cultura, somos não apenas cegos à dos outros, mas míopes quando se trata da nossa. Termino com uma citação de François Laplatine: “aquilo que os seres humanos têm em comum é sua capacidade para diferenciar uns dos outros, para elaborar costumes, línguas, modo de conhecimento, instituições, jogos profundamente diversos: pois se há algo natural nessa espécie particular que é a espécie humana, é sua aptidão à variedade cultural.”
Viva a diferença!

UMA CARTA DE AMOR PARA VOCÊ

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Dizem as boas línguas que a tecnologia aproxima as pessoas. Temos e-mail, Twitter, MSN, face book, Orkut, celular, webcam e o escambal. Tudo isso para ficarmos mais pertinho. O problema é: mais pertinho de quem cara pálida?

Estamos mais sós do que nunca nesse mundo de meu Deus. Cada um no seu PC.
O computador hoje em dia está substituindo a comunicação face a face. Somos siameses da mesma solidão. Estamos todos na rede. Juntos mais separados do que nunca.

Quero citar aqui um texto de Rubens Alves que li no livro de Margarida Maria Moura sobre a obra de Franz Boas:

“Uma carta de amor é um papel que liga duas solidões. A mulher está só. Se há outras pessoas na casa, ela os deixou. Bem pode ser que as coisas que nela estão escritas não sejam nenhum segredo, que possam ser contadas a todos. Mas para que a carta seja de amor, ela tem de ser lida em solidão. Como se o amante estivesse dizendo:
- Escrevo para que você fique sozinha .

É este ato de leitura solitária que estabelece a cumplicidade, pois foi da solidão que a carta nasceu. A carta de amor é objeto que o amante faz para tornar suportável o seu abandono. (...) Nada diz sobre o presente do amante distante. Daí sua dor. O amante que escreve alonga os seus braços para um momento que não mais existe. A carta de amor é um abraçar do vazio. (...) A carta é paciente (...). Uma carta contra o rosto – poderá haver coisa mais terna? Uma carta é uma mensagem. Mesmo antes de ser lida, ainda dentro do envelope fechado, tem a qualidade de um sacramento, presença sensível de uma felicidade invisível”

O mundo não escreve mais carta de amor.
Só um ridículo nunca escreveu uma carta de amor já dizia o poeta Álvaro de Campos:

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)
Álvaro de Campos, 21-10-1935



Então, estamos vivendo num mundo ridículo. Frio como as teclas de um computador. Devassado pelo Google Earth. Fazendo sexo virtual (valei-me meu Jesus Cristinho amado). Aproximamos de nós cada vez mais o desconhecido, o alheio, o grande irmão.

Sinto saudades das cartas de amor. Sinto saudade de esperar por ela.Sinto saudades dos seres ridículos.

Hoje pessoas se relacionam pelo MSN – plin escreveu – plin – o outro já recebeu – plin o outro já respondeu – pli...plin...plin...plin...

Estamos agonizando. Vivendo cada vez mais rápido. Morrendo cada vez mais rápido. Claro que você caro leitor, inteligente como é, logo vai indagar: como assim, morremos cada vez mais rápido se hoje em dia o homem está vivendo mais? Bom, se você chama isso de vida, concordo.

É claro que sem toda esta tecnologia você não estaria lendo este texto agora. Realmente talvez não. Mas estaria lendo um livro, ou quem sabe uma poesia de Álvaro de Campos, que com certeza escreve bem melhor que eu.

É muito bom estar JUNTO de você de novo - desculpe a ousadia do gesto.